Desexistir para transviver

A produção de Flávio Cury permeia questões das impermanências e das essências dos significados. Em Desexistir, o artista apresenta uma instalação composta por duas projeções de cenas e montagens trazidas de seu arquivo pessoal de imagens. Numa delas, em uma única tomada, a singela ação de um braço toca de leve a água que corre contra um barco navegando a todo pano, um atento ao impalpável. Enquanto isso, a outra projeção oferece abundantes cenas de águas, ora turbulentas, repletas de ondas e correntes, ora serenas, com brilhos que balançam pelas suas superfícies. Em nenhum momento há referências de tempo ou de lugar. O tratamento das cores, entre tons vermelhos alaranjados a um leve azul, dificulta ainda mais apreender se água doce ou se de mar, se dia ou se noite.

As imagens são projetadas paralelamente e em movimento circular, percorrendo as paredes do espaço redondo da Swissnex, como um grande farol. No entanto, a simulação desse corpo luminoso não intende amparar seus navegantes por viagens ou travessias. Pelo contrário, ele parece apenas lembrar das próprias águas em que se situa. Das imagens iluminadas não se avista beiras nem fronteiras. Não há lá, nem cá, nem ao menos sinal de terra à vista. Seria ali a terceira margem do rio?

O sentido de desorientação é enfatizado pela paisagem sonora que completa a instalação. Criada a partir da síntese granular do prelúdio da Suíte para violoncelo solo nº 1 em Sol Maior, de J. S. Bach, a desarmonia da esquemática composição barroca rui-se em fragmentos que se formam por diferentes velocidades, volumes e tons, como as águas em constante movimento. Assim como as projeções, o som igualmente circum-navega a sala de exposição.

Dentre náuseas e mal-estar, o homem navega as águas que constituem um grande sertão. Há de se ter largo fôlego para não se afogar, ou, para usar as palavras criadas e ressignificadas por Guimarães Rosa, é tal como se fosse preciso desexistir para transviver por entre as ideias e a realidade. Navegar é preciso, viver não é preciso, escreveu Fernando Pessoa. Au revoir! Boa viagem!

Giovanna Bragaglia